domingo, 26 de setembro de 2010

Don Quijote de la Mancha



Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito tempo que vivia um fidalgo dos de lança em cabide, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor...

"-Senhores, as tristezas não foram feitas para os bichos, mas para os homens; mas se os homens as sentem demasiado, tornam-se bichos...

Capítulo XI

"-Os filhos, senhor, são pedaços das entranhas dos seus pais, e assim se hão-de querer, bons ou maus que sejam, como se querem as almas que nos dão vida: aos pais cabe encaminhá-los desde pequenos pelos caminhos da virtude, da boa educação e dos bons e cristãos costumes, para que, quando adultos, sejam báculo da velhice dos pais e glória da sua posteridade; e o força-los a estudar esta ou aquela ciência não o tenho por acertado, embora não seja danoso o tentar persuadi-los; e quando não se haja de estudar para «pane lucrando», sendo tão venturoso o estudante que lhe deu o céu pais que lho deixem, sou de parecer que lhe permitam seguir aquela ciência para que mais o virem inclinado; e embora a da poesia seja menos útil que deleitável, não é daquelas que desonram quem a possui. A poesia, senhor fidalgo, no meu parecer, é como uma donzela meiga e de pouca idade e em todos os aspectos formosa, a que têm o cuidado de polir e adornar outras muitas donzelas que são todas as outras ciências, e ela há-de servir-se de todas, e todas se hão-de autorizar com ela; mas essa tal donzela não quer ser manuseada, nem arrastada pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças, nem pelos desvãos dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude que quem a sabe tratar transformá-la-á em ouro riquíssimo de inestimável preço. Há-de mantê-la, o que a possuir, dentro dos limites, não a deixando correr em torpes sátiras nem em desalmados sonetos; não há-de ser vendável de nenhuma maneira, a não ser em poemas heróicos, em lamentáveis tragédias ou em comédias alegres e artificiosas; não se há-de deixar manipular pelos truões nem pelo vulgo ignorante, incapaz de reconhecer ou de apreciar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor, que eu chamo aqui vulgo somente a gente plebeia e humilde; que todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve entrar na conta do vulgo..."


Capítulo XVI

Dos conselhos que Don Quijote deu a Sancho Pança antes de ele ir governar a ilha, com outras coisas bem consideradas...

"(...) que os lugares e grandes cargos não são outra coisa senão um golfo profundo de confusões. Primeiramente filho, hás-de temer a Deus; porque em temê-lo está a sabedoria, e sendo sábio não poderás errar em nada. Em segundo lugar, hás-de pôr os olhos em quem és, procurando conhecer-te a ti mesmo, que é o mais dificil conhecimento que possa imaginar-se. De te conheceres  resultará o não te inchares como a rã que quis igualar o boi; que se isto fizeres virá a ser os pés feios da cauda em leque da tua loucura a recordação de teres guardado porcos na tua terra. (...) e por isso mesmo os que não têm origem nobre devem acompanhar a gravidade do cargo que exercem com uma branda suavidade que, guiada pela prudência, os livre da murmuração maliciosa, de que não há estado que se livre.
Faz gala, Sancho, da humildade da tua linhagem, e não desdenhes dizer que descendes de lavradores; porque, vendo que não te envergonhas, ninguém se porá a envergonhar-te; e preza-te mais ser humilde virtuoso do que pecador soberbo. São inúmeros aqueles que nascidos de baixa estirpe subiram à suma dignidade pontifícia e imperial; e desta verdade te poderia apresentar tantos exemplos que te cansarias de ouvi-los.
Olha, Sancho: se tomas como norma a virtude e te prezas de praticar feitos virtuosos, não há que ter inveja aos feitos dos príncipes e senhores; porque o sangue herda-se e a virtude adquire-se, e a virtude vale por si só o que o sangue não vale.
Sendo isto assim, que o é, se acaso for procurar-te na tua ilha algum dos teus parentes, não o desdenhes nem afrontes, antes o hás-de recolher, agasalhar e obsequiar, que com isto satisfarás o céu, que gosta que não se despreza nada do que ele fez, e corresponderás ao que deves à natureza bem concertada.
Se levares tua mulher contigo (porque não fica bem que os que governam por muito tempo estejam sem as suas mulheres), ensina-a, doutrina-a e desbasta-lhe a natural rudeza, porque tudo o que ganha um governador discreto, perde-o muitas vezes uma mulher rústica e tola.
Se, por acaso, enviuvares, e com o cargo melhorares de consorte, não a tomes tal que te sirva de anzol e de isca, porque em verdade te digo que, de tudo o que a mulher do juiz receber há-de dar conta o marido na residência universal, com que pagará pelo quádruplo na morte o que ilegitimamente recebeu em vida.
Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de agudos.
Encontrem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as queixas dos ricos.
Procura descobrir a verdade no meio das promessas e dádivas do rico e bem assim no meio dos soluços e importunidades do pobre. 
Quando se puder atender à equidade, não carregues com todo o rigor da lei no delinquente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo.
Se dobrares a vara da justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia.
Quando te suceder julgar algum pleito de inimigo teu, esquece-te da injúria e lembra-te da verdade do caso. Não te cegue paixão própria em causa alheia, que os erros que cometeres, a maior parte das vezes serão sem remédio, e, se o tiverem, será à custa do teu crédito e até da tua fazenda.
Se alguma mulher formosa te vier pedir justiça, desvia os olhos das suas lágrimas e os ouvidos dos seus soluços, e considera com pausa a substância do que pede, se não queres que se afogue a tua razão no seu pranto e a tua bondade nos seus suspiros.
A quem hás-de castigar com obras, não trates mal com palavras, pois bem basta ao desditoso a pena do suplício, sem o acrescentamento das injúrias.
Ao culpado que cair debaixo da tua jurisdição, considera-o como um mísero, sujeito às condições da nossa depravada natureza, e em tudo quanto estiver da tua parte, sem agravar a justiça, mostra-te piedoso e clemente, porque ainda que são iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece e triunfa aos nossos olhos o da misericórdia que o da justiça.
Se estes preceitos e estas regras seguires, Sancho, serão longos os teus dias, eterna a tua fama, grandes os teus prémios, indizível a tua felicidade; casarás teus filhos como quiseres, terão títulos eles e os teus netos, viverás em paz e no beneplácito das gentes, e aos últimos passos da vida te alcançará a morte em velhice madura e suave, e fechar-te-ão os olhos as meigas e delicadas mãos de teus trinetos. O que até aqui te disse são documentos que devem adornar tua alma: escuta agora os que hão-de servir para adorno do corpo.

Capítulo XLII

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