quinta-feira, 14 de abril de 2011

Mesa e cama

"Logo que os seres humanos, mesmo os de bom feitio, amistosos e cultivados, decidem separar-se, costuma levantar-se uma poeirada que cobre e descolora tudo o que com ela entra em contacto. É como se a esfera da intimidade, a letárgica confiança da vida em comum, se transformasse numa substância venenosa com a ruptura das relações em que assentava. A intimidade entre os humanos é indulgência, tolerância, reduto das singularidades. Se ela se transtorna, o momento de debilidade aparece por si só, e com a separação é inevitável uma viragem para o exterior. Esta apropria-se de todo o inventário da confidencialidade. Coisas que uma vez foram símbolos de amorosa solicitude, imagens de conciliação, tornam-se, de súbito, independentes como valores e mostram o seu lado mau, frio e deletério. Professores que, após a separação, irrompem na habitação da sua mulher para retirar objectos do escritório, damas bem dotadas que denunciam os seus maridos por fraude nos impostos. Se o casamento oferece uma das últimas possibilidades de formar células humanas no seio do geral inumano, este vinga-se com a sua desintegração, apoderando-se da aparente excepção, submete-a aos alienados ordenamentos do direito e da propriedade e mofa dos que se julgavam a salvo. O mais protegido transforma-se em cruel requisito do abandono. Quanto mais «generosa» foi originariamente a relação mútua entre os cônjuges, quanto menos tinham pensado na propriedade e na obrigação, tanto mais odiosa será a degradação; pois é no âmbito do juridicamente indefinido que prospera a disputa, a difamação, o incessante conflito dos interesses. Toda a obscuridade em cuja base assenta a instituição do casamento, a bárbara disposição que o marido tem sobre a propriedade e o trabalho da mulher, a não menos bárbara opressão sexual que, tendencialmente, força o homem a assumir para toda a sua vida a responsabilidade de dormir com aquela que uma vez lhe proporcionou prazer - tudo isso é o que se liberta dos sótãos e das caves, quando a casa é demolida. Os que um dia experimentaram a bondade do geral na exclusiva pertença recíproca são agora obrigados pela sociedade a considerar-se patifes e a aprender que eles se assemelham ao geral da ilimitada vilania externa. Na separação, o geral revela-se como a mácula do particular, porque o particular, o matrimónio, não consegue realizar o verdadeiro em tal sociedade."

TH. W. Adorno, pp. 25-26

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